quinta-feira, 3 de junho de 2010

Sem título e reticências


Naquela tarde, em um dia que esperava ser medíocre como tantos outros da minha vida, aconteceu: começou a chover! Está bem, eu sei, não é grande coisa! Todo dia chove em algum lugar do mundo (ou será que não?). Agora mesmo deve estar chovendo em algum lugar. Pois bem, acontece que no dia que eu achava que ia ser o dia mais comum da minha vida, choveu – vale ressaltar que eu me encontrava no meio do caminho para minha casa, em um ônibus que por incrível que pareça não estava lotado (o que para um fim de tarde em plena segunda-feira é raro) – e divagava em pensamentos corriqueiros, como os trabalhos atrasados da escola por falta de administração de tempo e coisas assim. Já imaginava as madrugadas que teria que gastar para colocar tudo em dia quando os ruídos das primeiras gotas caindo no teto me fizeram voltar ao banco em que me encontrava.


Suspirei. "Ah! Não acredito que vou me molhar, essa chuva não podia esperar até eu chegar em casa?". Havia tempo que não levava um caldo. É... a natureza não espera, cheia de si, a chuva ia chegar porque ia chegar e pronto. Minha vontade não tinha nada a ver com isso! E que egoísmo meu achar que todos ali naquele ônibus compartilhavam o mesmo pensamento! A criança, que estava do meu lado na janela, brincava com a vidraça que agora embaçava, pois a chuva chegou com toda sua força, de modo que não se via no céu nenhum tom que não fosse cinza-grafite. O garoto ao meu lado, realmente não partilhava do mesmo pensamento.

Desci do ônibus. Cada gota que caía em meu rosto parecia levar de mim os pensamentos, pois enquanto caminhava, tinha a impressão de que meus sentidos tinham sido multiplicados por dez. Ouvia com clareza, e gostosa sonoridade, o som da chuva em minha roupa, a água deslizando dos meus cabelos para o rosto e fluidamente tocando todo meu corpo, antes de tocar o chão. Parei por alguns segundos, fechei os olhos e inclinando levemente a cabeça para trás, deixei que a água que vinha não-sei-da-onde-não-sei-para-que adentrar o meu ser. Bebi com grande contentamento alguns goles refrescantes.

Estava com lama espirrada até os tornozelos e ainda faltavam alguns quarteirões até minha casa. Passava distraída cantarolando alguma melodia que não me lembro mais e quando me dei conta – até agora não sei muito bem como aconteceu – estava eu no chão em uma possa de lama, com a cabeça tonta. Meu cérebro deu meia volta e me senti enjoada.

Passei a mão no rosto e vi jogada no chão uma bicicleta um tanto quanto retorcida. “Foi aquilo que jogou me aqui”, pensei. Só nesse instante percebi que havia uma pessoa ao meu lado perguntando se estava tudo bem e a minha resposta foi: “ah, com certeza!! Só estou brincando um pouco na lama porque me deu vontade!!” Para minha sorte estava chovendo, caso contrário, a essa altura já estaria ao meu redor uma dúzia de curiosos contando suas versões “legítimas” de como tudo tinha acontecido e provavelmente já teriam dito até quantos ossos eu tinha fraturado! Tive sorte de só ter ficado um pouco arranhada no joelho.

Tentei levantar, mas sentia as pernas bambas, o rapaz a meu lado, o que perguntou se estava tudo bem, me ajudou a levantar. Ainda chovia forte. O ferimento em meu joelho sangrava e com a água, escorria sem parar. Não era profundo, mas talvez por isso o rapaz aparentasse preocupação.

Após alguns segundos, meu juízo parecia voltar ao lugar. Devo ter batido a cabeça na queda. Olhei novamente para ele ao meu lado. Pegou a bicicleta do chão, pediu sinceras desculpas e foi embora.

A continuação desta história poderia ter sido muito boa. Muito boa mesmo. Mas a vida não é uma novela. Nunca mais vi o rapaz e sinceramente, não me interessa este ponto em questão. O que aconteceu depois? Bom, nada de interessante. Cheguei em casa, tomei um banho demorado (apesar de já estar molhada até os ossos) e adormeci. Digamos que o que aconteceu comigo tenha servido para alguma coisa... bom, há tempos não parava para sentir a vida, na verdade sentir-me sentindo a vida. Já estava no “piloto automático”, digamos assim, e aqueles segundos na chuva fizeram-me refletir sobre o tempo: se não soubermos aproveitá-lo, uma bicicleta pode atropelá-lo, deixando-lhe somente os arranhões, antes de se ter degustado um pouco de vida.